Sabotage: um disco coletivo de um rapper solo

 Sabotage: um disco coletivo de um rapper solo

Sabotage – 2016

Aquela semana de janeiro de 2003 foi intensa. Gravações na terça-feira, quarta e quinta, morte na sexta, dia 24. Um dia antes do aniversário de São Paulo, cidade-personagem da maioria das suas canções, Sabotage era assassinado aos 29 anos – apenas três, oficialmente, nas artes.

Dois anos antes, a música conhecia Rap É Compromisso, álbum de estreia desse artista que já havia se tornado uma lenda no rap por conta do sua história de vida e, especialmente, do seu talento. Tanto as rimas quanto as ideias estavam muito além do que o rap nacional produzia naquele momento. Muito próximo do que pode ser chamado de “gangsta rap”, Sabotage rimava sobre a cidade, os bairros que frequentava, sua história no crime (já deixada para trás naquele momento), a importância de fazer parte desse movimento cultural chamado hip hop e amizade. Aliás, o álbum de estreia é repleto de amigos. De Chorão a Black Alien, capitaneados pelo trio Daniel Ganjaman, Tejo Damasceno e Rica Amabis, todos estavam ali por Sabotage, por sua história e seu talento.

Em 2016, o trio lançava as músicas gravadas na fatídica semana, entre outras. A demora se justifica: a figura de Sabotage se tornou algo enorme e um conteúdo inédito como esse teria que, primeiro, ter as bênçãos da família e, depois, ser tratado com o máximo respeito pelos envolvidos. Os amigos estão de volta, dessa vez para reverenciar a obra de uma dos maiores rappers do Brasil. O álbum Sabotage foi lançado em outubro de 2016, em evento do Spotify no subsolo do Teatro Municipal, que reuniu a maioria dos participantes do álbum, além de amigos do rapper como João Gordo e Black Alien. As falas dos envolvidos foram carregadas pela emoção de estar lançando um conteúdo tão relevante, especial e importante na presença de Tamires e Sabotinha, os dois filhos do Sabotage e verdadeiros donos dessa história. Vamos ao disco.

 

Sabotage era um exímio contador de histórias e “Mosquito”, que abre o álbum, mostra isso. Com produção do Tropkillaz, a faixa tenta responder a pergunta de impossível resposta: “O que Sabotage estaria fazendo hoje?”. Rap, trap e drum and bass estão aí e o que se sabe é que, sempre a frente do seu tempo, Sabotage teria tudo isso no seu arsenal para contar histórias. Preconceito musical era algo que não estava no dicionário do rapper.

Na sequência, “Superar”, com DJ Nutz e Shyheim (rapper da rapa do Wu-Tang Clan), mostra, sim, mais uma vez, a genialidade do Sabotage. Me perdoe a redundância no texto, mas é ouvir para perceber como ele usa as rimas como percussão, ritmando o flow. Aqui é o rapper que manda no produtor e não o contrário. É Sabotage que dita o ritmo da música. O produtor pega carona.

A Favela do Canão é uma comunidade da zona sul de São Paulo, entre a riqueza das empresas de ponta do bairro do Brooklin e o aeroporto de Congonhas, às margens da Av. Jornalista Roberto Marinho (antiga Águas Espraiadas). É a personagem de “Canão Foi Tão Bom”, que tem vocais de Lakers, Negra Li e DBS. O Mestre do Canão, como Sabotage era chamado, pergunta à favela: “O que será de ti?”. Depois da morte do rapper, a comunidade já passou por incêndios, reintegrações de posse e só fez crescer, como tantas outras favelas do Brasil.

Sabotage era um cara extremamente sensível. E essa sensibilidade passou para “País Da Fome: Homens Animais”, a faixa mais tocante do álbum. O discurso de paz e esperança sobre o futuro sai para dar lugar à desilusão e a falta de perspectiva. Ao falar do irmão e da mãe, ele chora e os produtores tiveram a sensibilidade de deixar isso registrado. “Aqui não tem paz, aqui não tem sinceridade, não tem nenhum filha da puta sem maldade”. Um momento raro de um Sabotage desiludido, mostrando a realidade com tintas escuras. DJ Cia, do RZO, que ficou responsável pela faixa, percebeu que o caminho aqui não era carregar nos beats. Um violão e uma levada de bateria seguem a voz de Sabotage. “Senhor, me dê mais fé. Eu vou vivendo pelas ruas no meio de um exército/Mais vale a fé aqui no Brooklin sul, eu vou vivendo pelos cantos desviando dos escombros”. Arrepia. Sabotage chorou.

Difícil dizer quem foi o pioneiro da mistura do samba com o rap. Mas Sabotage soube fazer isso como pouco e “Maloca É Maré”, com Rappin’ Hood, Funk Buia e Duani, tem uma levada contagiante com os dois gêneros funcionando como se fosse um. “Essa base é boa”, comenta Sabotage antes do vocal de Hood. Essa dá pras pistas.

Quando o estúdio em que Sabotage gravava estava ocupado por outro artista, ele ia até a casa de Quincas, um amigo que morava em frente ao estúdio e também tinha equipamento em casa. Quincas gravava a voz e preparava umas bases bem simples, só para o registro. É ele que participa de “Respeito É Lei”, uma celebração à amizade.

“Quem Viver Verá” é a faixa mais old school do disco. Rap clássico produzido por DJ Cia com vocal de Dexter, que chega pesado rimando sobre o rap feito hoje no Brasil. Como se Dexter estivesse atualizando Sabotage com notícias de 2016.

“Levada Segura”, com Mr. Bomba e Fernandinho Beat Box, é Sabotage brincando com figuras da cultura pop da época. No refrão, o personagem Sonic, o porco espinho do vídeo game, e o termo “fatality”, do jogo Mortal Kombat, dão o recado: Sabotage é um “entertainer” e vai usar todas as ferramentas que estiverem ao seu alcance para transmitir o seu recado.

Como o material inédito do rapper ficou muito tempo guardado, muitos boatos começaram a aparecer e até algumas faixas bem primárias, produzidas por Quincas, chegaram a vazar na internet. Um dos boatos dava conta que teria bossa nova no próximo disco. E tem. “O Gatilho” tem uma levada bem bossa, com violão e um time de peso nos vocais: Céu, Rodrigo Brandão e BNegão, que, assim como Dexter, manda um recado para Sabotage – aqui de forma mais direta, como se fosse uma carta enviada de 2016 para 2003: “Sinto saudades reais das novidades, das risadas, das ideias avançadas que fizeram a cabeça de tanta gente ao longo desses anos e continuam por aí pairando no ar inspirando quem segue, quem inicia a saga de começar a rimar”.

“Sai Da Frente” e “Míssel” encerram o disco com as grandes parcerias da vida de Sabotage. Instituto e Daniel Ganjaman na primeira e Sandrão e DJ Cia, do RZO, na segunda.

O rap, especialmente nos dias de hoje, é uma arte coletiva. É comum ver mais de 10, 20 nomes nos créditos de um bom disco de rap, entre participações, produtores e parceiros. Mas poucos rappers conseguiriam reunir esse time todo num disco hoje em dia se não Sabotage. Talvez isso responda o mistério: como um artista de 29 anos, três dedicados às artes, conseguiu ser um dos maiores nomes do seu gênero num país grande e multicultural como o Brasil? Uma das respostas: ele somou. Seu carisma, seu modo de ver a vida e de tratar as pessoas criou uma verdadeira gangue de gente que não apenas o idolatrava, mas o respeitava. E ainda respeita. Sabotage não é um rapper, mas sim uma soma de muitas forças, algumas humanas e outras inexplicáveis, que levou o rap para outros patamares que alguns, hoje, ainda têm receio de explorar. Sabotage não sabia que era impossível, foi lá e fez.

Sabotage – Sabotage – 2016

Ouça o disco

  1. “Mosquito”
  2. “Superar”
  3. “Canão Foi Tão Bom”
  4. “País da Fome: Homens Animais”
  5. “Maloca É Maré”
  6. “Respeito É Lei”
  7. “Quem Viver Verá”
  8. “Levada Segura”
  9. “O Gatilho”
  10. “Sai da Frente”
  11. “Míssel”
  • Não Pulo Uma Faixa é um site cofundado pelo jornalista Marcos Lauro e que se dedica a falar sobre discos perfeitos, daqueles que ouvimos por inteiro. Semanalmente, ocupará esse espaço no Portal Mais Brasil com discos brasileiros que marcaram época.

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