A potência sonora de “Será só aos ares”, disco novo da MULAMBA

 A potência sonora de “Será só aos ares”, disco novo da MULAMBA

Foto: Fábio Setti

O que antes era grito, agora é silêncio e contemplação. Já que até isso torna-se uma potência sonora para o grupo curitibano MULAMBA. 

Será só aos ares, segundo disco da banda, sintetiza um modo desfazer os rótulos de outrora e trazer um outro olhar sobre o trabalho do sexteto. Lançado pela PWR Records, o álbum veio de uma forma orgânica e despretensiosa, apesar da amplitude de uma bagagem e miscelânea que todas têm.

Em uma manhã de quinta-feira, um dia após o lançamento, o cafezinho foi diferente por ouvi-las destrinchar mais detalhes e do porquê esse disco ser tão significativo para a carreira da banda. Confira abaixo:

Mais Brasil: Primeiro, eu queria agradecer demais o tempo de vocês, em plena manhã que é para “cafés e contemplação”, fazer uma entrevista demanda carga emocional, e vocês estarem disponíveis é uma honra muito grande. 

Caro Pisco: Imagina, a gente que agradece e eu acho que começar a fazer coisas pela manhã já é show! No final de tarde que nós estamos a “capa do salame”, entendeu? No final que ninguém quer saber de mais nada e é isso! Mas de manhã, só bora!

MB: Falando sobre começos, acho que não poderíamos falar sobre o homônimo, primeiro disco de vocês, até mesmo pelo reconhecimento que ele teve. Qual a diferença entre o processo de produção entre esse e o Será só aos ares?

Fernanda Koppe: No primeiro, a gente foi sentindo o tempo e fazendo com o que tinha em mãos, então foram surpresas atrás de surpresas e, quando a gente percebeu, a gente tinha que reunir músicas que já tínhamos, de certa forma, pra gravar, até porque foi uma época que a gente participou de um festival, ganhamos a gravação pela Red Bull, então foi muito rápido. No final das contas, era o compilado do que a gente tinha, e também era outra forma de falar, de tocar e outro espaço que estávamos transitando. Agora nesse, veio toda uma transformação pandêmica e tudo o que aconteceu, isso influenciou diretamente pra que a gente visse de outras formas as nossas expressões musicais e tivemos mais tempo juntas pra fazer todo o processo, também. E acabou que foi o reflexo que tá no disco também, uma coisa mais calma, sutil, com mais detalhes.

Caro Pisco: Um ponto bem massa de dizer que, no primeiro disco, começou com essa urgência, mas quando a Érica [Silva, guitarrista e produtora da Mulamba] chegou as músicas já existiam, aí ela ajudou a fazer arranjos e repaginar da melhor forma possível! Foi outra coisa, e, pra mim, foi um disco feito mais em conjunto, ao contrário do Será Só Aos Ares, que teve a pandemia, mas ainda assim nesse agora tivemos mais tempo pra fazê-lo. No outro, a Érica pegou as músicas já existentes, nesse a gente começou tudo do zero, as meninas foram mandando as ideias e a gente foi desenvolvendo ao longo do tempo. E, por causa dessa pandemia, foi muito difícil a gente se encontrar, até que arranjamos 10 dias pra esse encontro e gravamos o disco.

MB: Inclusive a junção de vocês emana discursos muito assertivos, mas nesse disco subverte um pouco as temáticas sociais, além do contexto pandêmico em que a produção foi feita. Mas dentro do processo de produção, como vocês buscaram trabalhar essas temáticas nas composições? 

Cacau de Sá: Bá, guria! Quando nos encontramos, tínhamos x músicas, e, quando a gente se encontrou, fomos pontuando. Colocamos tudo o que a gente tinha, e, se não me engano, deu cerca de umas 20 músicas.

Amanda Pacífico: Inclusive a gente teve que cortar muita coisa…

Fernanda Koppe: Tudo num quadrinho, organizado!

Caro Pisco: Inclusive não quero nem dar spoiler, mas já tem outro disco! O terceiro tá quase pronto!

Cacau de Sá: É verdade, e acho que foi o nosso momento de descontração, que foi pegar e botar no quadro. Uns começos de frases, que não tinha nome ainda, uns sons legais e muitas coisas que a gente queria trabalhar. E aí quando a gente colocou todas, a gente começou com o processo de distribuição, onde tudo ia se encaixar. O que agora pra gente é interessante lançar: a gente não pensou numa maneira mercadológica. Assim como no primeiro disco, as coisas aconteceram de uma maneira orgânica, sabe? A gente não tinha ideia de como ia soar as canções nesse segundo disco, mas a gente também só jogou o disco inteiro na mão da Érica, então só fluiu no final das contas. E fomos por afinidade, uma música conversa com outra, vindo de coisas que eu tinha, que a Amanda tinha…

Amanda Pacífico: Acho que a gente tava mais afim de descobrir o que a gente queria falar agora, ou o que não queríamos mais falar, sabe? A gente tá num processo de entender quais rótulos a gente queria perder. O primeiro disco foi um grito, um vômito, a gente precisava falar de coisas urgentes naquele momento. E a gente acabou falando, falando e falando, e não olhando pra dentro. Já esse disco é o contrário, a gente falou “calma, vamos colocar no quadro, vamos ver o que funciona falar agora e de que forma a gente vai falar isso”. Pensamos também em quais estilos vão falar com a gente agora… a gente quer falar da Música Brasileira, a gente quer estar mais à vontade nos ritmos, então começamos a unir nossas referências, de fato.

E a pandemia também permitiu que a gente adaptasse novas formas de composição e ferramentas, até porque a gente não tinha como se encontrar. Aí as opções eram: ou a gente esperava a pandemia acabar, sem saber quando seria isso ou quando a vacina iria chegar, ou a gente testava essas formas tecnológicas. Inclusive em “Bagatela” foi a primeira em que abri o [aplicativo] Garage Band e consegui fazer uma música inteira, com arranjo, letra e tudo mais. Olha que eu sou péssima com tecnologia, mas fui experimentando e saiu a música do jeito que ela tá lá. As meninas aproveitaram esses arranjos e harmonizaram.

E sobre a temática, é até interessante porque essa música fala exatamente sobre algo que estamos vivendo até hoje, que é o desmatamento da Amazônia e as queimadas, que por consequência chegou no Sudeste. No meio da pandemia, isso já era uma problemática e a gente ainda tem que lidar com isso, então não é uma coisa de “queremos falar sobre”, é uma coisa que afeta no nosso cotidiano, não tem como fechar os olhos pra isso, sabe? Então, as composições foram surgindo com o que a gente tava vivendo naquele momento. “Bagatela” marca muito isso, ainda mais com a participação do BNegão, ele complementou de longe, mandou pra gente, e meio que tudo foi se desenvolvendo de forma esquelética.

MB: Já que estamos falando de parcerias, como o BNegão, também conta com Luedji Luna e Kaê Guajajara. Como rolaram esses feats? Vocês compuseram as canções já pensando nessas participações?

Amanda Pacífico: Primeiro, em “Bagatela”, a gente procurou achar pessoas que tinham a ver não só sonoramente, que é uma cumbia, um ritmo latino, mas com a temática, né? Eu acho que o BNegão sempre esteve ali a frente do movimento, pela terra, pelas minorias, enfim, é um cara que já tá no movimento antes da gente nascer. Então, a gente queria alguém que soubesse do que estava falando ali pra complementar a letra e trouxesse essa coisa poética pra música. Eu acho que ele é um cara que vem do rap, vem da poesia e a gente queria trabalhar há tempos, pela importância e respeito muito ao trabalho dele.

Quanto à Luedji, sem comentários à importância dela na música brasileira. A gente queria essa representatividade da mulher pra falar do tema da maternidade, já que nenhuma de nós somos mães, então ela era perfeita pra isso. Além de mãe do Dayo, ela tem uma voz de sereia, traz uma leveza que a música requer e um timbre marcante que a gente buscava. “Bença” é um acalanto, então ela teve tudo a ver com a proposta e casou super bem.

Cacau de Sá: Já sobre a Kaê, eu já conhecia o trabalho dela enquanto musicoterapeuta, escritora e ela também tem o trabalho maravilhoso com a música falando dos indígenas que são favelados. Então, quando eu conheci a Kaê, eu não imaginava que pediria pra ela fazer um som, na real só fiz elogiar e falar do trampo dela. O melhor é que tive o mesmo retorno, ela gosta muito da banda. E a gente já tava falando sobre os feats, e daí pensamos nela pra fazer uma extensão em “Barriga de Peixe”.

Eu lembro quando me veio uma matéria de um biólogo marinho abrindo a barriga de animais marinhos e retirando de lá o lixo que a gente produz. Até porque é por causa disso que esses animais morrem e aquilo na hora me chocou muito, e veio num impulso essa introdução. Mas logo depois veio ela no meu pensamento, fizemos o convite e ela foi super receptiva. Mandei a guia, ela gostou e ficamos nessa espera.

Aí, em um belo dia, ela manda essa parte da letra e é uma pancada! A bichona é braba, merece público, merece respeito, merece atenção. Eu me sinto voltando pra casa quando tenho afinidade com uma mana que tá aí numa pluralidade que sabe o que é ser um corpo indígena na cidade, tá reverberando e tem muita coisa pra falar, como marco temporal, delimitação de terra e uma série de povos originários que ninguém quer falar sobre. Resgato nisso as minhas raízes que foram ceifadas muito antes de eu estar nessa terra, então foi um retorno bem incrível. Foi ótimo que logo depois conseguimos nos encontrar pessoalmente, na Segunda Marcha das Mulheres Indígenas, no meio do frenesi daquele acampamento e da votação do Marco Temporal, então é gratificante pra mim ter um braço de raiz na Kaê, no BNegão e na Luedji. Fomos muito assertivas nisso.

MB: Com essa ideia de assertividade e de não cumprir as expectativas da mídia, como vocês imaginam essa projeção para o ao vivo, retorno do público e afins? 

Fernanda Koppe: Eu acho que por enquanto é um mistério. Porque, quando a gente tá em palco, a gente tá construindo também, né? As identificações, os movimentos, os olhares, o jeito de tocar… é algo que vem ao longo do tempo. Particularmente, tô ansiosa porque agora quero saber quem sou eu em palco e o que esse álbum vai trazer nesse ambiente, além do estúdio, sabe? Vai ser uma dinâmica diferente também, já que nem todas tocam todas as músicas, então a gente vai poder se experimentar em outros lugares e alguns elementos. Enfim, vamos começar a sentir esse movimento melhor daqui pra frente porque é tudo construção, ao longo dos shows, da identificação e relação com o público.

Amanda Pacífico: Acho que a gente tá permitindo se experimentar novos formatos e não ficar sempre na coisa da “As 6 [integrantes] tocam tudo”. Às vezes não, às vezes só uma integrante vai conseguir dar o recado, vai tocar e vai ser bonito! O vazio e a simplicidade também são bonitas, a gente tá retomando pra esse lugar de experimento, de não ser o mesmo formato sempre, sabe? Nem toda música eu preciso cantar ou a Cacau, então a gente tá pairando nas pequenezas, na simplicidade também, conhecendo lugares que nem precisam ser de grito ou barulho. É bom oscilar e se aprofundar nesses formatos.

Cacau de Sá: A gente se identifica muito como “banda pra show”. Ao vivo, a gente funciona bem, não usamos playback, entrega o que a gente tem. E quando a gente pensou no segundo disco, colocamos como uma forma de cabeças e nervos mais descansados, sabe? O sistema nervoso tá mais tranquilo, todas nós amadurecemos, com mais de 7 anos juntas. Isso cabe tantas coisas, eu diria que é até uma dicotomia, vivendo uma parada que tem esse lugar do glamour, mas na verdade é muito trampo. É muito mais trabalho que arte, sabe? E nossa projeção é complemento, saber o tempo de cada uma. Além de tudo, não somos só nós 6, é um conjunto de pessoas trabalhando para que isso aconteça. É muito valioso o resultado, mas temos todo um processo que é mais valioso ainda. O mesmo vale no show, a gente só consegue refletir no ao vivo o esforço que a gente faz esse tempo todo.

 

Confira o álbum na íntegra:

Anaju Tolentino

Leia mais